"Você é minha menina linda,
você é o meu grande amor..." *
Candido Portinari, Mãe, 1936.
Imagem retirada do sitio http://www.portinari.org.br/ppsite/ppacervo/obrasCompl.asp?notacao=3032&ind=604&NomeRS=rsObras&Modo=C
Posso afirmar que sempre tive um "Q" pela linguagem verbal. Acredito que tudo começou muito antes de eu nascer. Entre os cantos e contos de meus pais, a leitura atenciosa das cartas enviadas pela minha avó paterna regadas às preces e repletas de votos de boas vindas ao bebê. Cantigas e longas conversas marcaram minha existência intra-uterina, depois, os livros, as músicas antigas, as orações e as histórias que o povo conta e assim foram criados os laços, e também, os nós.
Evidentemente, essa visão retrospectiva se deve aos meus encontros com Lacan e com Winnicott. Para o primeiro “a linguagem determina o sentido e gera as estruturas da mente, (...) ao mesmo tempo que a linguagem é estruturante do inconsciente, este também é estruturado como linguagem” (ZIMERMAN, 2001, p. 385). A relação dialética estabelecida entre linguagem e mente se sustenta pela interação entre o sujeito e um Outro.[1] Esta interação se apóia na fala como discurso, o que implica em dirigir-se à alguém tendo como expectativa uma resposta.
Através da língua é permitido ao sujeito mobilizar uma série de combinações e seleções[2], que vão auxiliar na construção dos significados, os quais são estabelecidos quando o sujeito opera a cadeia de significantes. Nas palavras de Ferreira (2002, p. 123), “é no discurso que os significantes se amarram, produzindo como efeito desta amarração o significado”. Mediante isso, o ingresso da criança no mundo das palavras ocorre através da formação de símbolos, estes contemplam os conceitos que contempla a coisa em si e seu nome. Os símbolos também são compreendidos como elementos que representam algo para alguém; apesar de possuir caráter subjetivo também estão marcados pelo olhar do outro que os nomeou.
Se aplicarmos o conceito winnicottiano de “objeto transicional” à linguagem oral verifica-se que esta pode se conforma como tal, dada sua capacidade de intermediar a realidade interna e externa. A relevância da presente constatação se valida ao passo que a teoria desenvolvida por Winnicott considera a existência e de uma terceira parte da vida humana, entre a realidade interna e a externa, que se forma no limite intermediário entre uma e outra. Para o autor: "trata-se de uma área que não é disputada, porque nenhuma reivindicação é feita em seu nome, exceto que ela exista como lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpétua tarefa humana de manter as realidades interna e externa separadas, ainda que inter-relacionadas" (Winnicott, p. 15, 1975).
Neste sentido, as primeiras palavras proferidas pela mãe ao bebê se configuram justamente nesta área intermediária “entre aquilo que é objetivamente percebido e aquilo que é subjetivamente concebido”. (Winnicott, p.26, 1975). A palavra exerce a função de objeto transicional auxiliando a interação do indivíduo com o mundo externo e apoiando o processo de construção do eu.
E foi assim, por meio das palavras meus pais exerceram as funções paterna e materna de um modo tão suficientemente bom que pude através das palavras me reconhecer enquanto sujeito composto de carne, osso e alma.
* Verso de autor desconhecido, cantado por minha mãe antes de eu nascer.
Bibliografia consultada:
FERREIRA, Nadiá Paulo. “Jacques Lacan: Apropriação e subversão da Lingüística” Ágora V. V N. 1 Jan/Jun 2002 113-132.
WINNICOTT, Donald W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1975.
ZIMERMAN, David E. Vocabulário Contemporâneo de Psicanálise. Porto Alegre: Artmed, 2001.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
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