terça-feira, 1 de março de 2011

A questão da oralidade

       "Você é minha menina linda,
você é o meu grande amor..." *


Candido Portinari, Mãe, 1936.

Posso afirmar que sempre tive um "Q" pela linguagem verbal.  Acredito que tudo começou muito antes de eu nascer. Entre os cantos e contos de  meus pais, a leitura atenciosa das cartas enviadas pela minha avó paterna regadas às preces e repletas de votos de boas vindas ao bebê. Cantigas e longas conversas marcaram minha existência intra-uterina, depois, os livros, as músicas antigas, as orações e as histórias que o povo conta e assim foram criados os laços, e também, os nós.
Evidentemente, essa visão retrospectiva se deve aos meus encontros com Lacan e com Winnicott. Para o primeiro “a linguagem determina o sentido e gera as estruturas da mente, (...) ao mesmo tempo que a linguagem é estruturante do inconsciente, este também é estruturado como linguagem” (ZIMERMAN, 2001, p. 385). A relação dialética estabelecida entre linguagem e mente se sustenta pela interação entre o sujeito e um Outro.[1] Esta interação se apóia na fala como discurso, o que implica em dirigir-se à alguém  tendo como expectativa uma resposta.
           Através da língua é permitido ao sujeito mobilizar uma série de combinações e seleções[2], que vão auxiliar na construção dos significados, os quais são estabelecidos quando o sujeito opera a cadeia de significantes. Nas palavras de Ferreira  (2002, p. 123), “é no discurso que os significantes se amarram, produzindo como efeito desta amarração o significado”. Mediante isso, o ingresso da criança no mundo das palavras ocorre através da formação de símbolos, estes contemplam os conceitos que contempla a coisa em si e seu nome. Os símbolos também são compreendidos como elementos que representam algo para alguém; apesar de possuir caráter subjetivo também estão marcados pelo olhar do outro que os nomeou.
          Se aplicarmos o conceito winnicottiano de “objeto transicional” à linguagem oral verifica-se que esta pode se conforma como tal, dada sua capacidade de intermediar a realidade interna e externa.  A relevância da presente constatação se valida ao passo que a teoria desenvolvida por Winnicott considera a existência e de uma terceira parte da vida humana, entre a realidade interna e a externa, que se forma no limite intermediário entre uma e outra. Para o autor: "trata-se de uma área que não é disputada, porque nenhuma reivindicação é feita em seu nome, exceto que ela exista como lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpétua tarefa humana de manter as realidades interna e externa separadas, ainda que inter-relacionadas" (Winnicott, p. 15, 1975). 
          Neste sentido, as primeiras palavras proferidas pela mãe ao bebê se configuram justamente nesta área intermediária “entre aquilo que é objetivamente percebido e aquilo que é subjetivamente concebido”. (Winnicott, p.26, 1975). A palavra  exerce a função de objeto  transicional  auxiliando a interação do indivíduo com o mundo externo e apoiando o processo de construção do eu.
          E foi assim, por meio das palavras meus pais exerceram as funções paterna e materna de um modo tão suficientemente bom que pude através das palavras me reconhecer enquanto sujeito composto de carne, osso e alma.

 * Verso de autor desconhecido, cantado por minha mãe antes de eu nascer.

Bibliografia consultada:

FERREIRA, Nadiá Paulo. “Jacques Lacan: Apropriação e  subversão da Lingüística” Ágora V. V N. 1 Jan/Jun 2002 113-132.
WINNICOTT, Donald W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1975.
ZIMERMAN, David E. Vocabulário Contemporâneo de Psicanálise. Porto Alegre: Artmed, 2001.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
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[1] Lacan cunhou uma terminologia específica, grafada de duas maneiras (Outro/outro). Utiliza pequeno outro, para aludir mais diretamente à alteridade, ou seja, a relação do sujeito com seu meio, com seu desejo e com os objetos (mãe, pai, irmãos).Em oposição  a isso, Lacan descreve o grande Outro para designar um lugar simbólico que, tanto pode ser um significante, a lei, o nome, a linguagem, o inconsciente, ou ainda Deus, que determina o sujeito, tanto inter como intra-subjetivamente, em sua relação com o desejo. O grande Outro, quando evocado pela criança, impede que se perpetue a ligação diática com a mãe e estabelecendo os limites entre as gerações do filho e a dos pais (Zimerman, 2001 p.308).
[2] Assim como Lacan se apropriou de termos utilizados por Saussure, o fez com seleção e combinação de Roman Jakobson que, “define a linguagem a partir de duas operações, que presidem todo ato de fala: a seleção e a combinação. (...) 1. A seleção de palavras e de outras entidades lingüísticas se realiza através de associações feitas por identidade (semelhança) e por oposição (diferença). de associação são chamadas de similaridade.(...) 2. A combinação de unidades lingüísticas já selecionadas cria um contexto, estabelecendo um modo de organização, em que a posição de um significante em relação aos outros determina a produção do sentido”.Ver (FERREIRA, 2002, p. 113-132).
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